O mito perdido e o vazio simbólico: conspirações, alma e sentido no tempo da descrença
Odivelas, 26 de Maio de 2025
Há dias em que me sento a observar o mundo — não o mundo das notícias, das estatísticas ou das redes sociais — mas o mundo mais fundo, aquele que se sente no peito, no silêncio das noites, nas perguntas que não sabemos bem como formular. E o que vejo, nesses momentos, é uma espécie de saudade. Uma saudade de qualquer coisa que já não sabemos nomear.
Vivemos tempos em que tudo parece estar à superfície. Temos acesso a toda a informação do mundo e, ao mesmo tempo, uma estranha sensação de estarmos a flutuar sem direcção. Aquilo que nos ligava ao invisível — os ritos, os mitos, as histórias que davam sentido — foi-se desfiando com o tempo. E ficámos assim: mais livres, mas também mais vazios.
É nesse vazio que, muitas vezes, surgem as conspirações.
Não me refiro aqui ao que é ou não verdade. Refiro-me à estrutura que leva tantas pessoas a agarrar-se a essas narrativas com tanto fervor. Por detrás de cada teoria da conspiração há, muitas vezes, uma alma ferida à procura de sentido. Uma vontade imensa de que o sofrimento tenha uma explicação. Um desejo de voltar a acreditar que o mundo, por mais duro que seja, tem um enredo.
Porque quando os grandes mitos desaparecem, quando já não há deuses nem destino nem ordem cósmica, o caos instala-se. E o ser humano — esse ser simbólico por excelência — inventa novos mitos. Substitui os deuses por elites ocultas, os anjos por denunciadores de verdades, os rituais por horas de vídeos e partilhas em grupo. Tudo para voltar a sentir que há uma lógica por detrás da dor.
Jung falou disto com uma clareza impressionante: sem mito, a alma adoece. O mito, dizia ele, é uma expressão do inconsciente colectivo — uma forma profunda de organizar o que nos acontece por dentro. Hillman levou ainda mais longe esta visão: para ele, a alma não pensa em ideias, pensa em imagens. E é com essas imagens que tentamos, sempre, compor o caos da vida.
Mas quando o mito deixa de vir de dentro, quando não brota da relação com o mistério, começa a degenerar. As conspirações são, muitas vezes, mitos feridos. Mitos que perderam a alma. Não nos elevam nem nos curam — apenas reforçam a divisão, o medo, o isolamento. Alimentam a sensação de que tudo está contra nós. E isso, no fundo, é profundamente solitário.
Tudo isto acontece num pano de fundo maior: o colapso das velhas religiões, o declínio das grandes verdades absolutas. Mas essa queda não apagou a sede. A alma continua a procurar o sagrado — só já não sabe onde o encontrar. Por isso vemos nascer tantas espiritualidades alternativas, práticas novas e antigas que regressam em formas reinventadas. Algumas são profundas e transformadoras. Outras são apenas ruído. Mas todas, de algum modo, apontam para a mesma carência: o desejo de reencontro.
É aqui que o tarot pode — e deve — ser visto com outros olhos. Não como um instrumento para adivinhar o futuro, mas como uma linguagem simbólica que nos ajuda a escutar. A escutar o que nos habita. Cada carta, cada arcano, é uma imagem que fala à alma — não para a controlar, mas para a revelar. O tarot não responde com certezas, mas com espelhos. Não oferece garantias, mas apela à consciência.
No lugar onde a conspiração grita "alguém está a esconder-te a verdade", o tarot sussurra "ouve o que em ti está por revelar".
Num tempo em que tudo parece ruir — certezas, sistemas, pertenças — talvez o que mais precisamos não seja de novos inimigos, mas de novos símbolos. Não de explicações que alimentem o medo, mas de práticas que nos ajudem a reencontrar sentido. Não de narrativas que nos separem dos outros, mas de imagens que nos unam ao que somos.
Porque, no fim de tudo, creio que é isto que mais falta: um lugar simbólico onde possamos pousar o coração. Onde o caos não precise de ser negado, mas transformado. Onde possamos voltar a respirar com a alma. E talvez então o vazio já não doa tanto. Talvez então o silêncio volte a ser sagrado.
