O Rosto que Muda - Reflexões sobre a Percepção Simbólica em Estado Modificado de Consciência
Introdução
Durante a minha prática terapêutica com recurso a Técnicas de Vigília Diferenciada e imaginação activa, vivi experiências que se têm repetido ao longo do tempo — e que, numa determinada sessão, se tornou particularmente nítida e útil: o rosto da cliente começou a modificar-se diante dos meus olhos.
Não se tratava de uma alucinação. O ambiente era sereno, o corpo dela repousava em leve transe, e a luz do dia entrava pela janela lateral. Nada, à superfície, sugeria distorção. E, no entanto, algo mudou: o olho esquerdo parecia coberto por uma película, quase translúcida, da cor da pele — como uma pala discreta, mas impossível de ignorar.
Esse momento despertou em mim um estado de atenção diferente. Uma escuta que não era apenas visual, mas sensível. Um saber que não vinha de fora, mas de dentro — como se aquilo que via não fosse apenas imagem, mas linguagem.
Compreendi, mais tarde, que o fenómeno observado não era inédito. Giovanni Caputo (2010) descreveu-o com precisão ao nomear aquilo a que chamou ilusão do rosto estranho no espelho (Strange-Face-in-the-Mirror Illusion). O seu trabalho, embora feito em contexto experimental com espelhos e luz fraca, revela algo que em contexto clínico também se manifesta — mas de outra forma: no rosto do outro, quando o campo terapêutico se torna espelho.
O que se vê quando se vê um rosto
Caputo demonstrou que, em ambientes com pouca luz e após alguns minutos de fixação, o próprio reflexo começa a alterar-se: ora surge um rosto deformado, ora o de um estranho, ora o de um familiar já falecido — ou até de um animal, uma figura arquetípica, uma criatura que inquieta ou consola.
As explicações passam por diferentes níveis:
Adaptação visual e o efeito de Troxler – com o olhar fixo, os estímulos periféricos desfocam ou desaparecem, criando alterações locais.
Colapso da integração gestaltica facial – o cérebro, em ausência de contraste e com fixação sustentada, deixa de conseguir organizar os traços faciais como um todo coerente.
Abertura à projecção simbólica – quando a percepção falha, o inconsciente aproveita para emergir. Aquilo que está à margem da consciência pode, então, surgir sob a forma de imagem.
A experiência que vivi, no entanto, não foi ao espelho. Foi no rosto da cliente — um rosto que, por instantes, se tornou portador de algo que não lhe pertencia só a ela. Algo antigo. Algo que pedia para ser reconhecido.
O campo terapêutico como espelho vivo
O campo terapêutico como espelho vivo
Há alturas na terapia em que o tempo se lentifica e o espaço muda de densidade. A atenção do terapeuta torna-se mais fina, e a do cliente mais aberta. O que até então era invisível começa a ganhar forma — não como discurso, mas como imagem, gesto, silêncio.
Nestes momentos, o rosto deixa de ser apenas físico: torna-se espelho do que está por se revelar. Tal como nos fenómenos descritos por Caputo, mas na direcção inversa — não é o meu reflexo que se altera, é o outro que, por instantes, carrega um traço ancestral, uma memória, um símbolo.
No caso desta cliente, viria mais tarde a saber que a avó materna havia perdido um olho, e que esse acontecimento estava envolto em silêncio e dor. A imagem de uma "pala" surgiu-me antes do relato. Como se o corpo, antes da palavra, já pedisse para contar a história.
Considerações clínicas e fenomenológicas
Estas percepções não são patológicas nem fantasiosas. Nascem de um estado de presença ampliada, onde se cruzam escuta sensorial, intuição e relação profunda. Exigem contenção, cuidado e humildade.
Podem ser entendidas como:
Imagens arquetípicas projectadas pelo inconsciente colectivo;
Ressonâncias simbólicas transgeracionais, activadas no campo relacional;
Sinais visuais metafóricos, que manifestam o que ainda não encontrou voz.
Trabalhar com elas requer não interpretá-las literalmente, mas permitir que se tornem ponte — entre o que a cliente vive e o que a sua história pede para ser reintegrado.
Conclusão
Nem sempre vemos o que está diante dos nossos olhos. E nem sempre o que vemos é só do mundo externo.
Em contexto terapêutico, o rosto do outro pode tornar-se espelho do invisível. Pode revelar, por breves instantes, aquilo que precisa de ser olhado — não com os olhos da análise, mas com a presença de quem escuta com o corpo inteiro.
O rosto que muda é uma linguagem do inconsciente. E o terapeuta, quando habita esse espaço simbólico com respeito e sensibilidade, pode ser mais do que espelho: pode ser testemunha do que emerge, e tradutor do que finalmente se mostra.
