Os Portais do Espirito: O Diabo e a Torre no Caminho Iniciático

09-04-2025

Na tradição esotérica e terapêutica do Tarot, muito se fala sobre luz, cura e transcendência. Mas nem sempre se compreende que a verdadeira espiritualidade começa quando o ego, já forte e estruturado, reconhece que não pode mais conduzir sozinho.

Este artigo é uma reflexão sobre dois dos Arcanos mais temidos do Tarot – O Diabo e A Torre – e a forma como nos conduzem, paradoxalmente, ao domínio mais profundo do Espírito. Não se trata de negar ou quebrar o ego, mas de atravessar, com ele, um limiar. Um lugar onde algo maior se revela – e onde, por um instante, somos convidados a largar o controlo e seguir de mãos dadas com o desconhecido.

Um convite à travessia interior. Como quem nos dá a mão e diz: "vem, é por aqui".

É um erro comum pensar que o espiritual começa com a luz. No Tarot, a luz não é o início: a verdadeira luz só brilha depois da queda. A Estrela (XVII), com a sua serenidade etérea, não marca o nascimento do Espírito. Ela é apenas visível depois de se ter passado pelo O Diabo (XV) e A Torre (XVI). Estes dois arcanos, muitas vezes temidos, são, na realidade, portais de acesso à supra-consciência – limiares que conduzem a alma à travessia definitiva para além do Eu.

A jornada do Louco pelos Arcanos Maiores pode ser lida como um mapa simbólico da totalidade psíquica, com três grandes movimentos:

  •  O Corpo (I a VII)

É a fase da construção do ego, da identidade e da acção no mundo. O Mago, a Imperatriz, o Carro: figuras que representam estrutura, vontade, desejo de domínio e pertença.

  • A Alma (VIII a XIV)

Aqui começa o trabalho interior. A Força introduz o domínio da vontade instintiva e a integração da energia vital. O Eremita desvia o olhar do mundo para dentro de si, começando a procura pela verdade interior. A Justiça traz a consciência ética e o julgamento equilibrado — agora não apenas social, mas espiritual. A Roda da Fortuna, a Morte e a Temperança aprofundam esta fase de conflito, perda e integração.

  • O Espírito (XV a XXI)

Aqui começa a verdadeira rendição. Mas não é um caminho de paz imediata: O Diabo confronta-nos com os apegos e as ilusões do ego. A Torre desfaz brutalmente os alicerces falsos da identidade. Só então A Estrela pode brilhar – a bênção que surge quando tudo foi perdido. Seguem-se A Lua, O Sol, O Julgamento e, por fim, O Mundo: uma espiral de transcendência e reintegração.

Tanto O Diabo como A Torre são, à superfície, cartas de dor. Representam compulsões, rupturas, destruições. Mas são também momentos liminares – ritos de passagem arquetípicos. Não são "espirituais" no sentido convencional, mas são espiritualmente nucleares porque forçam a alma a abandonar as últimas defesas do ego. 

É nesse abandono que a verdadeira espiritualidade se revela – não como uma ideia, mas como uma experiência.

A minha experiência pessoal reflecte exatamente esse processo. Recordo-me do meu acidente de carro em 1997 que transformou a minha vida. Durante aquele incidente, fui abalroado por um outro veículo, projectado para a linha férrea, onde fui atingido pelo comboio que se aproximava. A violência do impacto não apenas destruiu partes do meu corpo, como também destruiu a estrutura da minha identidade. A experiência de ser projectado para o desconhecido foi como uma metáfora directa para a energia da Torre: a vida como até então a conhecia e que parecia segura foi subitamente desfeita, e eu fui lançado para um espaço de total incerteza e vulnerabilidade.

No entanto, O Diabo apresentou-se de outra forma nesse momento: ele revelou os apegos inconscientes que eu tinha em relação à minha vida, à imagem de quem eu era. A dor, o medo, o sentimento de culpa e a sensação de estar preso ao passado — tudo isso foi trazido à superfície de forma brutal. Como no Diabo, a experiência revelou aquilo que me aprisionava: a falta de controle sobre o que estava a acontecer e a minha resistência em libertar-me da minha antiga identidade.

Apesar da dor e do sofrimento, a experiência foi também um portal para algo maior. A destruição da minha identidade, simbolizada pela Torre, forçou-me a confrontar a minha Sombra e a deixar ir as últimas defesas do ego. Foi quando tudo parecia perdido que comecei a vislumbrar a possibilidade de renovação, de transformação. Assim como A Estrela aparece quando tudo foi perdido, a minha própria bênção começou a emergir no caos e na escuridão da minha experiência. A minha verdadeira natureza começou a brilhar, não como uma resposta pronta, mas como uma presença silenciosa e com um poder transformador.

Jung chamou a este processo de desintegração necessária de "noite escura da alma", retomando a linguagem mística de São João da Cruz. É o momento em que a identidade construída já não serve e o Self começa a emergir – não como uma melhoria do ego, mas como algo radicalmente outro, maior, mais inteiro.

Neste sentido, O Diabo e A Torre não são o fim da jornada, mas o início da travessia espiritual propriamente dita. São portais do Espírito – lugares onde o Louco, já despido de máscaras e ilusões, dá o passo sem chão, entregando-se ao mistério.

É preciso perder-se para que a Estrela possa ser vista. É preciso cair para que o Espírito comece a soprar.

Se estás nessa noite escura, talvez estejas às portas de algo maior.

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