Ponderações Acerca de Quem Somos

05-11-2024

O que é que "eu" sou?

Começo por apresentar um paradoxo: o Paradoxo do Navio de Teseu. Este paradoxo levanta uma questão fundamental na filosofia: o que define a identidade de algo ao longo do tempo? Esse paradoxo questiona o que significa ser o "mesmo" quando todos os componentes que constituíam o objecto foram alterados e toca o fundo a natureza da identidade, sendo especialmente relevante para a compreensão de nós mesmos e da nossa continuidade enquanto "eu".

Neste paradoxo, o navio de Teseu sai de um porto e, durante a viagem, cada peça é substituída. Quando o navio retorna, já não contém nenhuma das peças originais. Surge então a questão: o navio que partiu é o mesmo navio que chegou?

Este exercício  tem grandes implicações na compreensão do ser humano, pois o nosso corpo e mente também mudam constantemente ao longo da vida. Tal como o navio, o corpo físico é continuamente renovado: as células morrem, renovam-se, e ao longo dos anos já não temos quase nenhuma célula "original". A mente, por sua vez, também muda, com novas experiências, memórias e percepções que transformam a nossa visão do mundo e de nós mesmos.

Então, o que nos faz ser o mesmo "eu" ao longo do tempo?

O conceito de mesmidade ou essência imutável aplica-se bem aqui. No caso do navio, poderíamos ver a identidade como algo que reside para além das peças materiais e da forma física. No ser humano, essa mesmidade poderia ser a essência ou alma que permanece igual, mesmo que a substância (o corpo e a mente) mude.

O corpo é o nosso principal ponto de contacto com o mundo. Enquanto "âncora" no mundo, ele permite-nos construir a nossa experiência sensorial e emocional , ou seja, experimentar e expressar, mas é também uma estrutura em constante mudança — as células morrem, renovam-se, e até os nossos pensamentos influenciam a forma como o corpo se comporta e responde. Contudo, a identidade parece resistir a essas mudanças corporais. Se fossemos apenas o corpo, cada transformação física mudaria completamente a nossa essência. Por isso, há uma percepção de algo em nós que permanece, mesmo quando o corpo se transforma.

No tocante ao nosso nome, ele é apenas uma etiqueta social, uma construção linguística que facilita a comunicação e que não representa a essência do que somos, apenas nos distingue dos outros. Muitos sistemas filosóficos e espirituais acreditam que, quando nos identificamos com o nome, limitamo-nos às expectativas e à imagem que os outros projectam sobre nós. Libertarmo-nos do nome e dos rótulos é reconhecer a nossa existência para além de qualquer definição externa.

Já as nossas acções, conquistas e actividades são uma expressão de quem somos, mas não são a nossa essência. A profissão, as realizações e os papéis que desempenhamos são apenas aspectos temporários da nossa experiência de vida. Eles podem mudar ou até desaparecer, mas o sentido do "eu" mantém-se. Há uma diferença entre o "ser" e o "fazer"; o que somos não se define pelo que fazemos, mas o que fazemos pode ser uma expressão do que somos.

Também as emoções são transitórias, surgem e desaparecem. Muitas vezes, são reacções a situações externas ou internas. O facto de ser capaz de observar as minhas emoções e entender que elas vêm e vão sugere que há um "observador" sensiente que não se altera — algo em mim que permanece intacto, independentemente do que sinto mas que tem consciência daquilo que sinto..

Este "observador" é algo descrito por muitas tradições espirituais e filosóficas como a essência do ser. É aquele ponto de consciência que assiste à minha experiência, que se mantém inalterado, independentemente do que acontece à minha volta ou dentro de mim.

Esse "observador", será a "minha Alma? Volto a perguntar, o que realmente significa "eu" e, se eu tenho uma alma, como posso também sê-la?

De facto, ao dizermos a "minha alma", equacionamos uma divisão: algo que me pertence e algo que sou. Eu tenho um carro, mas não sou o meu carro. Se tenho alguma coisa, ela é um objeto da minha posse, mas não necessariamente a minha essência. Portanto, se a alma é "minha", será que ela é realmente "eu"?

Para resolver esta equação, primeiro precisamos distinguir entre o "eu" enquanto sujeito e o "eu" enquanto objecto. Quando dizemos "a minha alma", o "eu" assume o papel do sujeito que tem algo — a alma. Mas então, quem é esse sujeito que afirma ter uma alma? Este é o ponto nuclear: essa questão sugere que o "eu" que percebemos como "a minha alma" ainda está separado de uma parte mais profunda, mais essencial.

Muitos filósofos e místicos apontam que o "eu" que pensa, sente e age é apenas um aspecto da nossa identidade, uma espécie de "personalidade" ou persona que se expressa no mundo. Esta persona está identificada com o corpo, a mente e os papéis que desempenhamos, mas não é necessariamente a nossa essência. A alma, nesse contexto, seria algo mais profundo, algo que está para além do "eu" quotidiano.

Se pensarmos na alma como uma dimensão intermediária entre o "eu" mundano e o "Eu" essencial (ou espírito), então a alma torna-se algo como uma ponte. Ela é o núcleo profundo do nosso ser, mas ainda funciona como um reflexo duma essência maior — algo que transcende a individualidade e se liga ao Todo. Nesse sentido, a alma é aquilo que liga a nossa experiência individual a uma realidade maior, mas ela própria não é a totalidade do Ser.

Aqui, a alma pode ser vista como o "eu interior", que ainda tem características, memórias e uma história — algo que o verdadeiro "Eu" observa e experiencia, mas não se reduz a isso. Para várias tradições, este "Eu" essencial é o puro observador, a consciência imutável que persiste além das transformações do corpo e da mente.

Ao questionarmos "Se tenho uma alma, então quem sou eu?", podemos estar a aproximar-nos do conceito do "Eu Sou" universal, que em muitas tradições é considerado o verdadeiro "eu" — uma consciência ilimitada, que não pertence a ninguém e, paradoxalmente, é a essência de todos. Neste estado de "Eu Sou", não há divisão entre possuidor e possuído, entre sujeito e objeto; há apenas uma experiência pura de ser.

Nessa perspetiva, não há uma "minha alma" separada. Em vez disso, a alma, o corpo e a mente são expressões temporárias de um "Eu Sou" universal, que está para além das identificações com qualquer identidade pessoal. Esta consciência pode utilizar a alma como um veículo de expressão, mas não se limita a ela. Na verdade, o "Eu Sou" é a base da nossa verdadeira identidade, enquanto que a alma é uma manifestação transitória.

Uma forma de visualizarmos esta relação é através de uma espécie de trindade interior: o corpo (veículo físico), a alma (núcleo individual e espiritual) e o espírito ou essência (consciência universal). A saber:

O corpo serve como veículo para a alma se manifestar no mundo material.

A alma é a expressão individual da nossa essência, que acumula as experiências e lições ao longo do tempo e das vidas, se considerarmos essa continuidade.

O espírito ou essência é o "Eu" eterno e imutável que transcende a experiência individual.

Assim, a alma não é a nossa essência total; é um reflexo dessa essência. Ela serve como um meio de experienciar e aprender, mas em última análise, somos algo ainda maior que a alma. A essência, ou espírito, é a pura consciência, que observa e experimenta através da alma, mas não se identifica com ela de forma absoluta.

Este paradoxo — de "ter" uma alma e, ao mesmo tempo, ser "algo maior" — é, em última análise, uma experiência de não-dualidade que desafia a lógica comum. Enquanto o pensamento racional vê um "eu" separado da "minha alma", a experiência directa do ser puro revela uma unidade onde o "eu" e a essência são inseparáveis. De facto, muitas tradições místicas sugerem que, ao transcendermos a dualidade de sujeito e objecto, experienciamos o verdadeiro "Eu" como uma presença que abrange tudo, sem divisões.

Esse "eu" profundo, livre das camadas externas e das identificações temporárias, é o que muitos chamam de consciência pura, presença ou essência espiritual.


Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora